Quando Mr Bharde trouxe para o seu pequeno apartamento em Mumbai um pinto recém-nascido, este conquistou os corações da sua família inteira. Mas o pinto cresceu, tornou-se galo, e o terror espalhou-se pelos cantos da casa.
Que destino espera este colega de casa tão arrogante?
O realizador indiano Rishi Chandna escolheu o título de Tungrus para o seu primeiro documentário curta-metragem e, ao fazê-lo, quebrou-nos a todos. O cacarejar de gargalhadas voaram de um festival para o outro — agora, está de olho em ti!
Uma curta-metragem documental realizada por Rishi Chandna
Fotografia: Deepak Nambiar
Som: Vinit D’Souza
Montagem: Neha Mehra, Niranjan Rasne
Tradução e legendagem: António Madeira, Ana Tátá, Rita João Pereira, Álvaro Soares
Entrevista

Rishi Chandna Diretor
“Nessa altura, estava a viver com um gato num T1 realmente pequeno, em Mumbai. Comecei logo a imaginar como seria… se também tivesse um galo!”
- Fale-nos de si, Rishi.
Nasci e fui criado em Calcutá e vivo agora em Goa.
Sou um cineasta autodidata. Aquilo que estudei resultou na educação mais aborrecida! Negócio, contabilidade, marketing… Nada disso me preparou para o mundo em que trabalho agora. No entanto, tenho que admitir que foi isso que estudei durante anos
Felizmente, alguns dos lugares em que estudei tinham cursos paralelos de cultura e comunicação, estudos fílmicos, semiótica. Comecei a ficar interessado. Por essa altura, um amigo meu tinha um disco rígido com 500 filmes à deriva pelo campus. Claro, hoje em dia podemos dar stream a tudo, fazer download de tudo, mas as coisas eram diferentes antigamente. Comecei a ver esses filmes todos e abri-me a outras formas de arte como a música e a poesia.
Após dois anos no mundo empresarial, despedi-me. Não tinha a mínima ideia de como me tornar um cineasta. Na Índia, a maior parte das pessoas tornam-se primeiro assistente de realização, depois terceiro AR, segundo AR e só depois é que se tornam realizadores. Mas AR não é uma posição criativa, é um trabalho de produção, algo que não me interessava.
Comecei então a fazer “documentários de casamento” para amigos. Não eram como os vídeos de casamento tradicionais que vemos nas entrevistas, com filmagens em câmara lenta e palermices dessas. Eram meus amigos, por isso tinha acesso à situação toda. Isto era tipo cinema vérité. Víamos a noiva a embebedar-se e a vomitar, pessoas a fazerem figura de urso…
Depois destes filmes de casamento, comecei a fazer anúncios em Mumbai. Viver em Mumbai por si só é como estar numa escola de cinema, uma vez que temos que pagar as contas. Por isso, como cineasta, um dos meus primeiros trabalhos foi gravar vídeos behind-the-scenes de grandes filmes de Bollywood. Poupei dinheiro até encontrar o tema de Tungrus. Assim que pensei nele, tive que fazer este filme.

- Vamos falar sobre isso. Como é que surgiu a ideia?
Em 2017, a minha mulher voltou do trabalho. Perguntei-lhe como é que correu o dia e ela disse que um amigo dela, Sameer, disse-lhe que andava a discutir imenso com o pai em casa dele. Perguntei-lhe o porquê. Ela disse-me que era porque têm uma galinha em casa faz 6 meses, e está a dar com eles em malucos. O pai quer matá-la e comê-la. Mas Sameer diz que não porque conhecem a galinha!
Ela contou-me isto de forma muito casual, como se fosse uma conversa normal! Fiquei logo muito curioso. Nunca tinha ouvido nada assim. Mumbai é uma cidade bastante populosa e caótica, com 22 milhões de habitantes, onde a ideia de espaço pessoal não existe. 8 ou 10 pessoas duma única família são capazes de partilhar um só quarto. Nessa altura, estava a viver com um gato num T1 realmente pequeno, em Mumbai. Comecei logo a imaginar como seria… se também tivesse um galo!
Fiquei a pensar, como é que será esta família? Qual será a sua decisão? Deverá esta galinha viver ou morrer? Tinha aqui um grande conflito, uma situação incrível que tinha que ser resolvida. Então, falei com a família através da minha mulher e expliquei o porquê de querer gravar um filme. Eles aceitaram!

- Como foram as filmagens no apartamento?
A família contou-me que estavam prestes a mudar-se daquele apartamento para um novo. Sairiam um mês mais tarde, por isso disseram-me que podia gravar aquilo que quisesse antes de se irem embora. E antes de se irem embora, tinham que decidir o que fazer com a galinha… Tinha apenas um mês, era esse todo o tempo que tinha para filmar.
Visitei a família algumas vezes sem a câmara, só para observar. Para ver como a galinha se comportava, como eles se comportavam, como é que era a sua rotina do dia-a-dia. Criei um pouco de confiança mútua e só depois começámos a filmar durante 8 dias, com uma equipa bastante pequena. Equipa pequena esta que era eu, um cineasta com uma câmara Canon emprestada, nada de luzes, e um sonoplasta. É uma casa pequena, de qualquer maneira! Não podíamos invadir a casa de alguém com um exército de técnicos, como uma equipa de filmagens, equipamento e tudo isso. E, de qualquer das maneiras, não tínhamos dinheiro para tal! Também estávamos a filmar com animais, que são muito sensíveis. Fiquei preocupado que dois gatos e um galo parassem de se comportar como o habitual por causa de nós “forasteiros”. O processo era manter tudo pequeno, fazer pouco barulho, trabalhar devagar e silenciosamente, dentro dos limites daquele espaço.
Não queria tomar partidos, queria apenas fazer de observador parvo. As pessoas que vejam o filme e decidam por si aquilo que sentem. Não queria estar a fazer a papinha toda às pessoas e a dizer-lhes o que sentir, quando é suposto estarem tristes ou a rirem-se. O cérebro delas que decida por elas, percebem?
É por isso que a câmara nunca sai do tripé. Seria fácil ter filmado à mão, ou handheld, e seguir a galinha de um lado para o outro. Mas penso que foi mais difícil estar calado e quieto, ser mais irónico.
“Mumbai está completamente sobrelotada. Esta densidade enorme de pessoas leva ao caos que leva a situações extraordinárias.”
- Quando é que se apercebeu que o filme tinha potencial humorístico?
Assim que ouvi sobre a família com a galinha, senti que tinha algo de muito absurdo. Existem vários tipos diferentes de humor. Eu sempre fui fã do humor negro, inexpressivo, porque é sempre um tipo de humor que reside no subtexto. Está debaixo das camadas da história superficial.
Soube desde o início que o humor aqui não era apenas físico. Ajudou-me a compreender como filmar, editar e capturar esse tom.

- O que diz o seu filme sobre a Índia?
É um filme bastante de Mumbai. É completamente sobrelotado. Esta densidade enorme de pessoas leva ao caos que leva a situações extraordinárias. É como se houvesse uma intersecção entre a maluquice e a normalidade. Muitas partes da Índia existem nessa intersecção.
Como forasteiros, podem achar que há aqui algo de excêntrico, um pouco idiossincrático ou peculiar. Mas a Índia tem quase 2 mil milhões de pessoas e nem sequer é um único país. De estado a estado, muda a língua, a comida, a cultura. Mas há algo constante: o caos de que nascem situações bastante absurdas como aquela que vemos em Tungrus.
- Existe, então, uma mensagem política por detrás desta situação absurda?
Bem, apercebi-me, após fazer o filme, de que o galo é uma alegoria política do “forasteiro” no ambiente de alguém.
Este filme aborda muito do que está a acontecer na Índia neste momento, porque entrámos numa situação política bastante extrema nos últimos 10 anos. A Índia está a lidar com um novo tipo de nacionalismo religioso, onde certos grupos não são bem-vindos e são considerados “forasteiros”, mesmo se esta nunca foi a nossa história. Sempre fomos um país muito laico e aberto.
Em 2017, quando estava a filmar, era proibido vender e comer carne de vaca em vários estados da Índia. Este filme torna-se, então, num comentário sobre a relação das pessoas com a sua comida e, na Índia, é uma relação que se encontra sob restrição. Penso que esta mensagem política já se encontrava em mim quando me senti atraído por esta história.

- De acordo consigo, qual é a particularidade deste documentário curta-metragem?
Um documentário em curta-metragem é uma forma de arte, algo que não é menos que um filme de ficção de longa-metragem, uma curta de ficção ou um documentário em longa-metragem. É absolutamente cinema!
Já conheci cineastas de várias partes do mundo em festivais, aos quais perguntei se era o seu primeiro ou segundo documentário em curta-metragem. Eles diziam que não, que já tinham criado 8 documentários em curta-metragem. Na Índia, um cineasta que faça isso não é levado a sério. Não teriam dinheiro de qualquer maneira, uma vez que não temos qualquer tipo de ecossistema para curtas, muito menos para as que são documentárias.
Um país como a Índia, onde são criados imensos filmes todos os anos, tem uma indústria cinematográfica enorme. Mas não há amor ou apoio suficiente para este tipo de expressão.
Para produzir um filme de ficção é preciso muito dinheiro. É necessário um elenco de atores, uma equipa de filmagens, equipamento, figurino, luzes, maquilhagem… Mas, para um documentário em curta-metragem, se houver dinheiro o suficiente para ser financiado pelo próprio realizador, este tem liberdade total. É o tipo de liberdade que experienciei com Tungrus. É incomparável.
Quero fazer filmes de longa-metragem, ficção ou documentário, mas já sei que não terei a mesma liberdade criativa enquanto artista. Por isso, digo viva os documentários em curta-metragem! E uma salva de palmas para a 99, que ajuda cineastas a alcançar novos públicos.